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RESIDÊNCIA LISBOA : DIA #2
Mouraria
Rua do Benformoso
18ºC
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A conversa estendeu-se até de madrugada e só foi interrompida pela promessa de acordar cedo na manhã que se aproximava. Os nossos olhos são os mesmos, mas algo mudou na qualidade do olhar.
O calor já se faz sentir. Nestes dois dias, a sombra tornou-se essencial ditando a forma como nos movemos. Refugiámo-nos no “Largo do Forno” para um pequeno-almoço tardio. Na verdade, “Forno” não existe na toponímia desta pequena praça. Ainda assim, entre croissants e uma tarte de amêndoa, foi por este nome que, em respeito à memória popular, decidimos continuar a conhecer este pequeno terreiro.
São Cristóvão. Há quem negue que pertença à Mouraria. Tudo aqui é diferente, como quando arrumamos a casa à espera de visitas. Aburguesado, ornamentado, é o contraste com o turbilhão do sítio onde acordámos. Duas Mourarias a umas escassas centenas de metros de distância.
Almoço. Pataniscas com arroz de feijão no Zé dos Cornos.
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Amarrada a uma planta decrépita, uma placa em cartão :
Por favor não roubar as plantas. Têm dono. Obrigado.
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Através de umas portadas verdes, chegamos a Os Amigos da Severa.
Ainda mal tínhamos entrado, já uma ginginha nos esperava acompanhada pelo som roufenho de um fado emitido por umas colunas tão antigas como a casa.
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Na parede, lê-se:
Bebe, não tenhas medo
Até teres grão na asa
A gente guarda segredo
E vai-te levar a casa
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Toda a gente sabe quem é o Sr. António. Quarenta e sete anos atrás daquele balcão. Entusiasticamente, ainda se diz apaixonado pela Mouraria :
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Ao ser interpelado :
– O Sr. António também já não me conhece …
O Sr. António responde :
– Eu conheço o mundo, não haveria de o conhecer ? Você não é do mundo ?
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Lá fora, o barulho ensurdecer das máquinas denuncia os trabalhos de substituição da calçada.
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O Sr. António partilha :
– E eu disse-lhes, ponham cá as pedras antigas que elas sabem as histórias todas; já foram pisadas muitas vezes …
Acrescenta :
– As pessoas entram aqui mal e saem bem. Reconhecem sempre este lugar. E assim vivemos na nossa terra, que é a Mouraria.
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Lá fora, a Rita diz Fevereiro, da Matilde Campilho :
O século cresce connosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
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Largo da Amendoeira. Conhecemos a Amália, uma costureira que nos fascinou com a sua profissão. Com olhos a transbordar de paixão pelo seu ofício, ensinou-nos os segredos das máquinas e exibiu orgulhosamente os seus pontos perfeitos. O marido Felismino – apenas Mino, como gosta de ser chamado – contou-nos que em tempos fundou uma associação, já desaparecida, que organizava tertúlias de poesia, flamenco e música. Ao som do riso das crianças que brincavam à nossa volta, contou-nos como no Verão, em miúdo, dormia na rua pelo simples prazer de sentir a brisa da madrugada.
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Não há motivo para haver cor se ao mundo pertence
Numa sombra pode encontrar-se uma Achada.
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