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RESIDÊNCIA LISBOA : Dia #4
Mouraria
Rua do Benformoso
13ºC Amanhã deve chover
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Acordámos contrariados, sabendo que devemos já muitas horas à cama.
Pela primeira vez desde que chegámos, atravessamos os limites da Mouraria para ir ao encontro da Rosi.
É uma brasileira apaixonada pela sua pátria, tendo trabalhado como locutora de rádio e como actriz. Compara a sua terra natal, Volta Redonda, banhada pelo rio Paraíba do Sul, com a relação entre Lisboa e o Tejo. Lá, o padroeiro é Santo António, aqui é São Vicente. Conta-nos ainda que o povo, quando faz uma promessa, coloca uma estátua do santo, de cabeça para baixo, no congelador. Idiossincrasias da tradição…
Está em Portugal há já alguns anos e dedica-se ao Migrantour, um projecto de visitas guiadas por Lisboa na perspectiva de um imigrante. Fala-nos da Mouraria brasileira, em Salvador da Baía, onde a calçada é portuguesa e as fachadas pombalinas. São duas Mourarias, semelhantes em forma e em nome. É difícil acreditar que as separa um oceano.
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A Propósito da bandeira brasileira:
“O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”
Auguste Comte
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No Largo de São Domingos, o Sol já queima a pele. Entre transeuntes e turistas na fila para a Ginjinha, conversamos sobre a simbologia daquele lugar e das várias transformações que sofreu ao longo dos séculos. Sentimos bem presente a memória do Palácio da Inquisição e do massacre aos judeus em 1506. Ao fundo, no Rossio, a estátua de D. Pedro IV – D. Pedro I, no Brasil – une ambos os povos numa comunhão há muito pacificada. Dentro da Igreja que dá nome ao Largo, sentimos as chamas que a engoliram em 1959.
Cá fora, três vendedoras, protegidas pela sombra de um jacarandá, exibem garridas vestes africanas. Em cestas de vime, apresentam uma panóplia de frutos secos, malagueta e quiabo. Compramos cajus e amendoins.
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Quem sou eu na fila do pão?
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Terminamos o nosso passeio, na Severa, de mãos dadas, acompanhados de um poema cantado pela Rosi. Seguindo uma coreografia atrapalhada, inspirada pelo pisar das uvas na vindima, encontramos nos pés as referências do Samba do Gonzaguinha.
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Ah, meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser bem melhor
E será!
Mas isso não impede
Que eu repita:
‘É bonita, é bonita,
E é bonita’.
Viver e não ter a vergonha
De ser feliz…
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Na Parreirinha, esperam-nos o Miguel e o Luís para almoçar. A coincidência de serem ambos Coelho não é mais do que isso mesmo. O Miguel é Presidente da Junta de Freguesia, o Luís o seu braço direito.
O grelhador na rua antecipa a refeição caseira. As mesas da esplanada mais parecem uma sala de estar onde se encontra uma grande família.
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Como vai a sua mãe, está melhor?
Esse joelho, já está bom?
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Os nossos companheiros de refeição conhecem bem o território e as gentes da Mouraria. Reconhecem as diversas questões sociais e, entre garfadas e interrupções de quem vai cumprimentando o “Senhor Doutor”, reflectem connosco sobre o futuro. Fala-se da antiga rivalidade entre Mouraria e Alfama e de como hoje já tem menos expressão.
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Até já casam uns com os outros.
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A última visita do dia é ao Grupo Desportivo da Mouraria, uma colectividade com sede no antigo Palácio dos Távoras. A imponência do edifício contrasta com a simplicidade das ruas circundantes. Aqui, são notórias as marcas do tempo. Entramos para um corredor estreito que nos conduz ao pequeno bar que, antigamente, era parte da cozinha do Palácio. As paredes e os tectos em abóbada estão cobertos por azulejos e a enorme chaminé mantém-se a funcionar. Não fosse o balcão em aço inoxidável e a televisão empoleirada no cimo de uma porta, regressaríamos facilmente ao passado áureo desta casa. Encontramos o Paulo. Foi, em tempos, presidente desta colectividade. Fala-nos com orgulho do seu tempo de dirigente.
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Na parede, um recorte de jornal:
Fado e Boxe no Palácio dos Távoras.
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Entre um frenesim de gente, ouve-se música. Já começou o ensaio da Marcha da Mouraria, que descerá a Avenida daqui a menos de dois meses. Não podemos partilhar mais pormenores, prometemos guardar segredo…
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