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RESIDÊNCIA LISBOA : Dia #3
Mouraria
Rua do Benformoso
14ºC
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As pessoas não vivem, sobrevivem.
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Batem à porta. É o Nuno Franco, 64 anos, Mediador Comunitário. Conhece a Mouraria como ninguém. Faz parte da terceira geração, tendo vindo para cá em 1978 morar com uma avó viúva. Na mesma casa, arrendada pelo seu avô em 1911, nasceu o seu pai.
Ao longo de décadas que acompanha a vida do bairro. Em 2008, ajudou a fundar a Associação Renovar a Mouraria com o objectivo de defender direitos sociais e humanos.
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Conta, orgulhoso:
A Inês é a Mãe. Eu sou o pai.
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Tira do bolso do colete um pequeno caderno onde aponta com rigor os detalhes do seu dia-a-dia. O registo contém nomes, idades e moradas embora, na realidade, sejam desnecessários; o Nuno sabe-os de cor. O seu trabalho, ao serviço da Junta de Freguesia, é percorrer diariamente o território do bairro e garantir o acompanhamento, principalmente, à população mais idosa. Ao mesmo tempo que sinaliza e encaminha situações de debilidade económica e social, ajuda a combater a solidão.
Reconhece o peso emocional do seu trabalho e compara-o à batalha de um médico que luta para salvar o doente. Ao fim de 15 anos, conta-nos, aprende-se a gerir a tristeza.
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Já perdi 335 pessoas. Se começo a sofrer, deixo de conseguir trabalhar.
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Saímos de casa. O Nuno é o nosso cicerone. Todos lhe merecem uma palavra de apreço ou um desabafo.
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Na rua, um rapaz de quem não sabemos o nome, dizia:
A minha voz não é minha, é dele.
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No rés-do-chão de um edifício devoluto, avistamos a entrada de uma das duas mesquitas da Mouraria. À porta, uma parede forrada com pequenos cubos, potenciais recipientes de centenas de pares de sapatos.
Perguntamos se podemos entrar. Descalçamo-nos e subimos meia dúzia de degraus. Ao longo de uma parede vemos uma série de pontos de água. Aqui se fazem as abluções: lavam-se os pés, as mãos e a cara. Libertam-se as impurezas para poder abraçar a espiritualidade. Estamos em pleno Ramadão, época de jejum, e sentimos no ar um distinto cheiro a especiarias. Uma cozinha improvisada prepara já o iftar que, imediatamente após a oração do início da noite, consolará 600 pessoas. Terão de organizar quatro turnos. A mesquita não tem espaço para todos ao mesmo tempo.
Oferecem-nos comida – não aceitamos. Apesar da boa intenção, e da genuína hospitalidade, não nos parece adequado comer enquanto os anfitriões jejuam. Dentro do templo, numa sala modesta coberta de tapetes vermelhos debruados a azul, uns oram enquanto outros dormem.
Despedimo-nos calorosamente e de coração cheio. Convidam-nos a regressar na hora da refeição. Prometemos tentar comparecer em breve.
Continuamos o nosso caminho. Pelas ruas conhecemos:
Frankie – Proprietário do Bomercado, um estabelecimento de produtos biológicos e dietéticos naturais. Acredita nos benefícios da alimentação vegetariana e macrobiótica.
Dipa – Nepalesa, funcionária de um restaurante. Tenta ajudar uma colega grávida – copeira no mesmo estabelecimento – a encontrar alojamento.
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“Apartamento T2 – Renda 1600€ mensais.”
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Arif – Moçambicano com passaporte português, nascido antes de 1974. Proprietário de uma perfumaria há 31 anos, é testemunha viva das transformações do bairro.
Chegamos à Associação Renovar a Mouraria. Sentamo-nos em círculo e escutamos a Rita, a Lara e a Larissa falarem do seu trabalho.
Se ontem se nos alteraram os olhos, hoje transformou-se-nos o espírito. Ao terceiro dia de imersão na Mouraria as emoções vêm à tona e tudo deixa de ser indiferente. O conforto da distância deu lugar a uma incompreensão e incredulidade. Talvez seja do cansaço que o corpo já sente, dos testemunhos de desespero ou da apropriação que fizemos deste espaço que começamos a tomar como nosso.
Todas as mudanças trazem ansiedades. Esta não é excepção. Sentimos uma espécie de dor de crescimento, apesar de sabermos que em breve regressaremos à rotina de cada um. Se ontem éramos turistas na nossa terra, hoje sentimo-nos parte de uma comunidade e, com ela, partilhamos as angústias das assimetrias e as injustiças que a vida lhe traz. No fundo, sentimos. Sentimos na alma pedaços da vida de toda esta gente. Sentimos com intensidade, como o pé descalço sente as imperfeições das pedras do chão e, pisando uma mais pontiaguda, rasga a pele num golpe de carne e de sangue.
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Mas.
Até no escuro há transcendência.
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